18 de junho de 2014

O sonho é uma imensa saudade de você.


Os sonhos são conversas que deveriam ter acontecido.

Sonhei com meu amigo Rafael, colega do Ensino Médio, ainda impactado pela sua morte repentina, aos 42 anos, em acidente de carro no final de maio.

Rafa estava sentado em um refeitório, sozinho, olhando para frente.

Ambiente muito claro. Muito iluminado.

Apoiava seus braços na mesa. Não comia nada. Não usava óculos, como na escola. Daquela época, mantinha os cabelos molhados para acalmar redemoinhos.

Cheguei perto e fui cumprimentá-lo com intimidade, colocando meu corpo para frente, disposto ao abraço.

Ele me alertou:

– Você está se confundindo, pensando que sou uma outra pessoa, né?

Eu engasguei, revistei o passado para ciscar na memória se ele tinha um irmão gêmeo, um irmão parecido.

Não. Não. De modo nenhum. Era ele. O riso imenso. O riso com os dentes dos olhos brilhando. O riso sábio. O riso enciclopédico. O riso com todos os risos do mundo.

– Você não é o Rafael? Rafael Lodeiro Müller?

– Não. Depois que a gente morre, a gente é outro.

Ao perceber meu rosto triste, ele buscou me consolar.

– Calma, calma. Eu sei quem foi Rafael.

– Para de loucura! Você é o Rafael!

– Eu fui Rafael. Woody, sei que é inteligente...

(recordei que ele sempre me chamava de Woody, em homenagem ao cineasta Woody Allen, e me explicava os problemas do colégio me elogiando)

– ...sei que vai entender, parece complicado, mas não é. Você morreu para mim, mas eu estou vivo para você.

– Eu é que morri?

– Sim, você é que morreu. Pois não estou mais no mundo para lembrá-lo, para sentir saudade, para sofrer com sua falta. É você que sonha comigo, não sou eu que sonho contigo, há uma diferença importante aí, não posso mais sonhar contigo.

– Então você está vivo para mim e eu estou morto para você?

– Sim. Isso. Rafael nunca esteve tão vivo como agora. Está vivo na mulher, está vivo nos filhos, está vivo nos seus irmãos, está vivo nos seus pais, está vivo nos seus sobrinhos, está vivo nos seus colegas de hospital, de plantão, de consultório, nos seus amigos de infância e adolescência. Nunca poderei morrer naquilo que signifiquei para eles. Não posso morrer em você, Woody. A alma não é um cemitério calmo, é um jardim bem barulhento.

Os sonhos são conversas que aconteceram dentro do coração.

14 de junho de 2014

Viajar para dentro

Os brasileiros estão viajando mais. Não só para Miami, Cancún e Nova York, mas também para o Nordeste, Pantanal e Rio de Janeiro. Pouco importa o destino: a verdade é que os pacotes turísticos e as passagens mais baratas estão tirando as pessoas de casa. Muita gente lucra com isso, como os donos de hotéis, restaurantes, locadoras de automóveis e comércio em geral. Alguém perde? Talvez os psicanalistas. Poucas coisas são tão terapêuticas como sair do casulo. Enquanto os ônibus, trens e aviões continuarem lotados, os divãs correm o risco de ficar às moscas.
Viajar não é sinônimo de férias, somente. Não basta encher o carro com guarda-sol, cadeirinhas, isopores e travesseiros e rumar em direção a uma praia suja e superlotada. Isso não é viajar, é veranear. Viajar é outra coisa. Viajar é transportar-se sem muita bagagem para melhor receber o que as andanças têm a oferecer. Viajar é despir-se de si mesmo, dos hábitos cotidianos, das reações previsíveis, da rotina imutável, e renascer virgem e curioso, aberto ao que lhe vier a ser ensinado. Viajar é tornar-se um desconhecido e aproveitar as vantagens do anonimato. Viajar é olhar para dentro e desmascarar-se.
Pode acontecer em Paris ou em Trancoso, em Tóquio ou Rio Pardo. São férias, sim, mas não só do trabalho: são férias de você. Um museu, um mergulho, um rosto novo, um sabor diferente, uma caminhada solitária, tudo vira escola. Desacompanhado, ou com amigos, uma namorada, aprende-se a valorizar a solidão. Em excursão, não. Turmas se protegem, não desfazem vínculos, e viajar requer liberdade para arriscar.
Viajando você come bacon no café da manhã, usa gravata para jantar, passeia na chuva, vai ao super de bicicleta, faz confidências a quem nunca viu antes. Viajando você dorme na grama, usa banheiro público, come carne de cobra, anda em lombo de burro, costura os próprios botões. Viajando você erra na pronúncia, troca horários, dirige do lado direito do carro. Viajando você é reiventado.
É impactante ver a Torre Eiffel de pertinho, os prédios de Manhattan, o lago Como, o Pelourinho. Mas ver não é só o que interessa numa viagem. Sair de casa é a oportunidade de sermos estrangeiros e independentes, e essa é a chave para aniquilar tabus. A maioria de nossos medos são herdados. Viajando é que descobrimos nossa coragem e atrevimento, nosso instinto de sobrevivência e conhecimento. Viajar minimiza preconceitos. Viajando não têm endereço, partido político ou classe social. São aventureiros em tempo integral.
Viaja-se mais no Brasil, dizem as reportagens. Espero que sim. Mas que cada turista saiba espiar também as próprias reações diante do novo, do inesperado, de tudo o que não estava programado. O que a gente é, de verdade, nunca é revelado nas fotos.
Janeiro de 1998 – Jornal Zero Hora

1 de junho de 2014

O Nosso Mundo

Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno
Poisando em ti o meu olhar eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos…


Os meus sonhos agora são mais vagos
O teu olhar em mim, hoje é mais terno…
E a Vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e presságios!


A Vida, meu amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!


Que importa o mundo e as ilusões defuntas?…
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?…
O mundo, Amor!… As nossas bocas juntas!…